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Sexta-feira, 29 de junho de 2018

Entrevista com Liliane Rocha, CEO e fundadora da Gestão Kairós, consultora especializada em Sustentabilidade e Diversidade

Liliane Rocha é CEO e fundadora da Gestão Kairós, consultoria especializada em Sustentabilidade e Diversidade. Mestre em Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), especializou-se em Gestão Responsável para a Sustentabilidade.

PORTAL ADVERSO - O que é a 4ª Revolução Industrial?

Liliane Rocha – É a revolução pautada nos avanços tecnológicos que estão ocorrendo em escala exponencial, na inteligência artificial, nanotecnologia, biotecnologia, impressoras 3D, entre outros. Ressalto que não são somente as tecnologias que representam esta revolução, mas também como elas se conectam entre si, e com as disciplinas, os processos, as estruturas e as instituições humanas, gerando transformações e mudanças em todo o campo social.

Ou, ainda, na linguagem de alguns dos estudiosos, significa a convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas. Acrescento que é e refere-se aos impactos que esta convergência está gerando no contexto social, nas relações, nos processos produtivos e no próprio sistema capitalista.

Falar de cronologia, neste momento, é difícil, pois estamos em meio a uma transição, vivendo o ápice da mudança de forma exponencial. Entendo que, no futuro, será necessário olhar para trás e, aí sim, teremos a possibilidade de fazer uma cronologia e ter mais clareza deste momento vertiginoso que estamos vivendo.

PORTAL ADVERSO - Hoje, o capital é o grande beneficiário desta nova revolução. Você acredita que existe um território em disputa, ou seja, que a sociedade (que representa a força de trabalho) também poderá colher os frutos do avanço tecnológico?

Liliane – Devido à desigualdade de renda global, existem vários aspectos pelos quais podemos olhar estas questões. Primeiramente, vale ressaltar que enquanto em alguns países do mundo ditos desenvolvidos a revolução industrial já é uma realidade - inclusive na vida das crianças -, nos países em desenvolvimento, em que a maior parcela da população vive com até 2 dólares por dia, ela ainda está distante.

Lembremos que, segundo estudo da Oxfam, em 2016, as 62 pessoas mais ricas tinham tanto dinheiro e bens quanto metade da população global. Ou seja, assim como em todas as revoluções industriais anteriores, certamente há um grupo seleto que irá (e está) liderando esse processo e usufruindo dos seus benefícios e resultados.

A regra é: quanto mais avançarmos na construção de uma sociedade mais equânime ao longo dos próximos anos, mais chances teremos de que uma parcela maior da população se integre e se  beneficie da revolução industrial. Quando mais o abismo da desigualdade se mantém ou se alarga, mais centralizada será a colheita desses frutos.

"... quanto mais avançarmos na construção de uma sociedade mais equânime ao longo dos próximos anos, mais chances teremos de que uma parcela maior da população se integre e se  beneficie da revolução industrial. Quando mais o abismo da desigualdade se mantém ou se alarga, mais centralizada será a colheita desses frutos."

PORTAL ADVERSO - No artigo "O impacto da 4ª Revolução Industrial nos avanços sociais e ambientais", você destaca seis pontos fundamentais da sociedade capitalista, afetados pelo avanço tecnológico. O que podemos destacar como positivo e negativo em cada um deles?

Liliane – Na educação, os pontos positivos são os novos sistemas e métodos de aprendizados. Seguimos usando o sistema educacional do período prussiano, que não visa ao desenvolvimento integral do indivíduo. Hoje, o aluno não depende do professor para conseguir informação (isso ele consegue na rede), depende e dependerá cada vez mais do professor para construir conhecimento. Além disso, em algumas escolas do mundo já é possível estudar anatomia humana com imagens 3D. Isto é uma mudança total na forma de aprendizagem. Não vejo nenhum aspecto negativo, neste momento. Além do desafio de atualizações constantes de professores, principalmente em municípios menores e mais afastados dos grandes centros urbanos, em concorrer com o bombardeio de possibilidades que crianças e adolescentes têm na atualidade.

"Não vejo nenhum aspecto negativo, neste momento. Além do desafio de atualizações constantes de professores... "

Nas relações sociais, vejo como positivo o fato delas, ao mesmo tempo em que aproximam pessoas, agilizarem o acesso à informação e deslocarem o centro de poder da sociedade. Antes, por exemplo, uma pessoa que fosse reclamar de uma empresa procuraria os meios formais, talvez fosse atendida, talvez não, talvez demorasse anos para ter um retorno. Hoje, a pessoa faz um post e o mundo inteiro sabe o que aconteceu, valida ou rechaça a demanda. A pessoa chama a atenção para a sua causa e, por vezes, obtém retorno sem passar por sequer um mecanismo formal. O aspecto negativo é a fluidez e superficialidade extrema nas relações sociais.

"O aspecto negativo é a fluidez e superficialidade extrema nas relações sociais."

No que se refere à inclusão social, destaco, como positivo, o poder da união de grupos em torno de causas, de forma rápida e, por vezes, pró-ativa, gerando movimentações sociais. Acrescentaria somente que, em casos de grupos como PCDs e a terceira idade, temos também o avanço expressivo das tecnologias assistivas.

Não vejo aspetos negativos neste caso, além dos possíveis dilemas futuros da demanda de inclusão daqueles que estiverem à margem da 4ª Revolução Industrial.

"Não vejo aspetos negativos neste caso, além dos possíveis dilemas futuros da demanda de inclusão daqueles que estiverem à margem da 4ª Revolução Industrial."

No emprego, é positiva a transferência de trabalhos que ainda são realizados por mão de obra humana de forma insalubre ou insegura para as máquinas. Ou ainda, dizendo de outra forma, deslocamento de profissionais que hoje estão focados em trabalhos mais braçais e/ou insalubres ou inseguros para atividades mais salubres, seguras e bem remuneradas. Isto, claro, se formos capazes de reduzir as desigualdades. Além disso, em algumas empresas do mundo, em determinados setores, já temos funcionários trabalhando boa parte do tempo com óculos 3D, para ver projeções de produtos, como carros e outros. Neste sentido, a 4ª Revolução Industrial oportuniza ferramentas que, potencialmente, poderiam contribuir para a melhoria do desempenho/resultado profissional. Negativo é a possível perda de empregos em massa. Principalmente em países com uma base da população em extrema pobreza e desempenhando trabalhos braçais, como é o caso do Brasil, China e Índia. A automação poderá acabar com 7 milhões de empregos até 2020. No Brasil, até 50% dos postos de trabalho poderão ser automatizados.

Neste sentido, a 4ª Revolução Industrial oportuniza ferramentas que, potencialmente, poderiam contribuir para a melhoria do desempenho/resultado profissional. Negativo é a possível perda de empregos em massa.

Outro dia, um taxista reclamou da perda de espaço para os Uber. E eu respondi para ele: “Olha, você está com o olhar errado, porque com o advento dos carros automáticos, daqui a alguns anos não terá lugar nem para você (táxi) e nem qualquer aplicativo. Os carros não precisarão de motoristas. Não adianta mais olhar para o passado, se quiser ter empregabilidade, olhe para o que está vindo logo a seguir.” Além disso, teremos a mudança do centro de produção com o advento das impressoras 3D.

Na relação com o meio ambiente, é positiva a consolidação de tecnologias verdes, que não impactam e até recuperam o que já foi degradado, como carro elétrico, teto solar, APPs em prol de iniciativas sociais e ambientais etc.  Não acredito que haverá impacto negativo na relação com o meio ambiente. Acho impossível que, hoje, uma nova tecnologia seja aceita pelo mercado e pela sociedade se não considerar, também, a melhoria de qualidade do meio ambiente e da vida das pessoas.

 "Não acredito que haverá impacto negativo na relação com o meio ambiente."

Por fim, na relação com o outro, até o momento, o principal aspecto positivo que temos observado é o fortalecimento de grupos em prol de causas sociais, ambientais e de diversidade (mulheres, negros, pessoas com deficiência, LGBT+, jovens, idosos, pessoas de religiões diversas), que conseguem, agora, encontrar semelhantes, independente das distâncias, e pautar agendas na esfera pública e coletiva. Assim como nas relações sociais, o aspecto negativo são as relações líquidas, no sentido de uma fluidez e superficialidade extremas.

"Assim como nas relações sociais, o aspecto negativo são as relações líquidas, no sentido de uma fluidez e superficialidade extremas."

PORTAL ADVERSO - Como seria um mundo sem emprego? O ser humano, por fim, poderia se livrar das tarefas monótonas e repetitivas, e se dedicar a momentos de reflexão e desenvolvimento do conhecimento, como conjecturou Domenico di Masi, no livro "Ócio Criativo"?

Liliane – Acredito que o ser humano sempre se adequa ao contexto tecnológico de forma a estar mais sobrecarregado. Explico: há anos, nossos ancestrais demoravam dias e mesmo meses para se deslocar de um local para o outro. Demoravam tempos nas comunicações por meio de cartas, entre outros recursos. Seria de se pensar que, agilizando o nosso deslocamento em carros e aviões ou a nossa comunicação por meio de telefones móveis, sobraria tempo para um eventual ócio.

No entanto, isso não é verdade. Socialmente, o que fizemos com o tempo que deveria estar sobrando foi trabalhar mais e o tempo todo. Por isso, tenho muita dificuldade de vislumbrar, hoje, um mundo sem emprego. Não acredito que é neste caminho que a 4ª Revolução Industrial irá nos levar, mas sim no caminho de um remodelamento social que, para ser vislumbrado, depende ao extremo de qual modelo de sociedade vamos consolidar – em curto prazo – nos próximos anos. Se será pautado em uma sociedade mais igualitária ou mais desigual.

"Não acredito que é neste caminho que a 4ª Revolução Industrial irá nos levar, mas sim no caminho de um remodelamento social que, para ser vislumbrado, depende ao extremo de qual modelo de sociedade vamos consolidar – em curto prazo – nos próximos anos. Se será pautado em uma sociedade mais igualitária ou mais desigual."

PORTAL ADVERSO - Como você destacou, existem regiões do planeta que ainda vivem na Idade Média. Qual o futuro desta parcela da humanidade?

Liliane – Se não avançarmos em redução das desigualdades, essa parcela da população se perpetuará em situação de miséria.

PORTAL ADVERSO - Como será o ser humano do futuro?

Liliane – Hibrido?! Em 2015, uma empresa na Suécia começou a implantar chips nos seus funcionários. Em 2017, foi a vez de uma empresa em Wisconsin, nos Estados Unidos. Este processo, que inicia de forma singela, pois os funcionários estão tendo chips colocados em suas mãos para abrir portas, acionar impressoras e outras atividades cotidianas e banais, certamente, em poucos anos, atingirá uma maior escala e funcionalidade.

Há um receio geral de que o ser humano seja substituído pelas máquinas. Não acredito nisso, mas sim que o ser humano, por meio de intervenções cirúrgicas e aprimoramentos, irá se tornar cada vez mais semelhante, fisicamente, às máquinas.

"Há um receio geral de que o ser humano seja substituído pelas máquinas. Não acredito nisso, mas sim que o ser humano, por meio de intervenções cirúrgicas e aprimoramentos, irá se tornar cada vez mais semelhante, fisicamente, às máquinas."

PORTAL ADVERSO - Que dilemas éticos e sociais podem advir desta nova relação entre os seres humanos e os robôs?

Liliane – Depende de cada tecnologia. No caso da inteligência artificial, creio que o maior dilema é se, em algum momento, haverá vida consciente. Se sim, como será tratada? E, no caso das demais tecnologias, até que ponto podemos realizar intervenções e melhorias no ser humano sem que ele perca a sua natureza humana?

PORTAL ADVERSO - Alguns setores defendem a criação de políticas compensatórias para mitigar o impacto das tecnologias no mundo do trabalho. Entre elas, estão a redução da jornada de trabalho e a garantia de renda mínima. Na sua opinião, estas medidas podem ser eficazes no sentido de reduzir as desigualdades? 

Liliane – Para mim, que trabalho com sustentabilidade e diversidade, a maior questão que temos, e que está em alta no momento, é se devemos adotar um renda mínima básica universal devido à automação. Uma vez que o emprego formal está em decadência em todo o mundo, e já temos hoje uma base expressiva da população global - cerca de 1 bilhão de pessoas - em extrema pobreza, como vamos garantir a efetivação dos direitos básicos previstos na Declaração dos Direitos Humanos para todos?

Medidas como essas não garantem que a parcela mais pobre da humanidade usufruirá da 4ª Revolução Industrial, mas sim que não será massacrada por ela. O caminho da solução pode ser esse, ou podem ser outros, mas o debate é urgente.

Por Daiani Cerezer

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